“Céu, tão grande é o céu
E bandos de nuvens que passam ligeiras
Prá onde elas vão, ah, eu não sei, não sei
E o vento que toca nas folhas
Contando as histórias que são de ninguém
Mas que são minhas e de você também(...)”
Dindi – Tom Jobim
Tereza estava farta de cebolas. Comia cebolas no desjejum, almoço e jantar. Antes de dormir, engolia um pedaço de cebola junto com um copo d'água. Para amenizar a acidez, por vezes, mergulhava-as numa solução de água com açúcar. Mas, nem assim, Tereza evitava a chuva.
Era tarde quando mirou-se no espelho. E percebeu o dilúvio. Esfregou, sofregamente, as costas da mãos sobre as pálpebras. Queria que elas fossem de borracha e a chuva de grafite. Mas seus olhos borravam com uma grossa argila negra. Devia ser a terra das cebolas que comia.
Era tão forte a chuva que seus joelhos já estavam cobertos pela água enlameada que aumentava furiosamente. Afastou-se de sua imagem sem olhar para trás e agarrou-se a sua arca de esmaltes. Segurou-a firmemente debaixo do braço e subiu na cadeira mais alta que encontrou. Posicionou-se sobre a mesa e despejou todos os seus vidrinhos. Escolheu sete cores que mais lhe agradaram e as enfileirou. Olhava-as à contraluz da janela da sala. Gostou do azul.
Preparou as unhas. Pingou uma gota de lágrima em cada uma. Era permitida apenas uma por dedo. Pingava, espalhava, esperava secar. Dedo a dedo, um por um, até chorar em duas mãos. As últimas dez contadas lágrimas das cebolas.
Agora era a vez do azul. Abriu o vidro, megulhou o pincel e deixou as viscosas gotas escorrerem para dentro do vidro. Limpava o excesso nas bordas do vidro e estendia as unhas para receber a cor. Primeiro a unha grande do polegar. Pintou cada canto, da base até a ponta, girava a falange para certificar-se de que cada espaço estava preenchido. Removia a tinta que grudava na pele com uma esponja embebida em vinagre.
Vieram depois o indicador, dedo médio, anelar e mindinho. Repetiu o mesmo processo com a mão direita.
Agora Tereza não ouvia mais os seus pingos de chuva. As lágrimas estavam cobertas pelo azul de seu arco-íris. A nova aliança da sua vida. Dançou suas mãos pelo ar. Imitou aves do céu com seus longos dedos. Sentia uma súbita alegria.
Encontrou na arca um esmalte furta-cor. Decidiu que ele combinava com o azul. E, assim, pintou, unha a unha, cada um de seus dez dedos.
Desceu da cadeira, correu pela casa. O solo estava seco, não precisava mais da arca. Roubou um último esmalte purpurina. Sentia uma divertida subversão preencher seus dedos.
Tereza estava farta de cebolas.
Decidiu plantar o céu em suas mãos.